Do nó cego ao nó gordio

Saúde em Portugal – Do nó cego ao nó gordio

Reflexões de um médico ou proposta  para um próximo executivo

 

António Borges  escreve no Expresso (12/01/02) – “O Dossier de Saúde é um dos pontos mais sérios que exigem reflexão profunda e solução ponderada, mas quando como nos últimos seis anos,  não se tem o sentido da urgência acaba por não se fazer quase nada.”

Ora, a  reflexão profunda que eu e muitos outros intervenientes regulares em textos sobre saúde temos feito levou-me, diria, obrigou-me,  a apresentar algumas propostas para que um próximo executivo possa realizar que afinal talvez não seja tão dificil assim encaminhar o que ainda não está bem na Saúde,  para o trilho certo.

Curiosamente sempre que surge uma nova administração ou tutor da tutela, fala-se, escreve-se sempre que vai ser feita uma “reestruturação” na Saúde.

Essas reestruturações são caras, demoradas, tem conseguido alterar alguns pontos mas,  finalmente,  a impressão que fica quando muda o tutor ou toda a administração é a de  que não se avançou muito.

Por outro lado,  sistematicamente,  nos últimos 20 anos a mensagem que tem conseguido passar regularmente para os média é a que o grande papão são os médicos e os seus lobbys, chamuscando por vezes também os enfermeiros e  outros técnicos e administrativos de saúde.

É uma técnica conhecida de todos aqueles que amadureceram após o 25 de Abril que  uma mentira repetida muitas vezes em muitos locais acaba por ter eco permanente e ficar no subconsciente do público como uma verdade.

Digo do público, porque quando passamos  aos individuos e à comunidade internacional,  como veremos,  não é bem assim.

Vou tentar caracterizar as minhas reflexões e propostas em várias áreas que conheço bem após mais de 35 anos de medicina pública e privada, áreas problemáticas como conhecem todos os portugueses que já estiveram doentes ou que tenham tido que contactar o Sistema de Saúde Português.

 

Primeiro mito – Público e Privado

Até ao 25 de Abril só tinham direito ao Sistema Público de Saúde  os empregados que descontavam para a previdência ou que trabalhavam para o Estado,  ou grandes Eps,  ou empresas privadas que tinham   sistema de saúde próprios.

Não sei se alguém já calculou quantos portugueses estavam fora do Sistema público mas posso afirmar sem correr o risco de grande desvio que seriam provavelmente 50%.  Portanto,   os outros 50%,  ou eram “saudáveis” e  não usavam o sistema,  ou,  quando precisavam  do sistema  recorriam à medicina privada,  (os que o podiam fazer – 15 a 20 % ?) ou usavam pontualmente os serviços de urgência (curiosamente como hoje) só que como não existiam registos informáticos o Estado não cobrava e o doente ou familiares nunca chegavam a ter que pagar os seus custos – e esses factos nunca ficavam registados.

Existiu sempre uma grande fatia de situações que também nunca ficaram estatísticamente registadas nessa época – era a medicina gratuita feita por médicos ou instituições privadas que,  quer se queira quer não,  serviu de tampão sobretudo ao nível da província para que o Sistema existente não entrasse em ruptura.

Após o 25 de Abril –  com as alterações que teve a Constituição  no que respeita ao Serviço de Saúde Público surgiu o Nó Cego em que temos estado. Todos os cidadãos residentes em Portugal  passaram a ter direito gratuito ou tendenciosamente gratuito à Saúde,  mesmo que não estivessem doentes – Essa regra que marca a diferença com o passado foi a meu ver como que uma “primeira directiva comunitária instituída em Portugal” antes até do acordo de entrada na CE em 1986.

Faço essa afirmação porque vivi como típico médico português o Sistema híbrido  mas razoavelmente eficaz da Medicina Pública Hospitalar de manhã e respectivos serviços de urgência semanal ou bi-semanal e consultório privado de tarde.

Na realidade parece-me que teria sido relativamente fácil copiar e adaptar dos sistemas existentes na altura em alguns Países Europeus que já tinham SS Nacional, por Ex: França, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo e até o Reino Unido e Canadá,   que  à data talvez fosse o mais avançado do ponto vista social e de facilidade de acesso,  embora,  como se veio a  verificar,  passado alguns anos pouco consistente do ponto vista financeiro.  Assim como todos os outros afinal, que acabaram nos anos 90 por chegar a situações de acréscimo de custos insustentáveis para os orçamentos nacionais obrigando por isso  a uma adaptação em direcção às regras de gestão  financeiras que o mercado de cada um deles ditou:

Dessa longa e rica experiência vivi 3 épocas distintas – Hosp. Sta Maria, Hosp. Egas Moniz/Faculdade, Hosp. Pulido Valente e  vários estágios nos EUA, Brasil, Canadá e Inglaterra, além dos Congressos Nacionais e Internacionais indispensáveis à formação contínua dos  médicos.  Apercebi-me  a partir talvez dos finais dos anos 80 que estávamos a aproximar-nos rapidamente do que de melhor se fazia no Mundo no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento dos cidadãos com doença mas também se começou a evidenciar rapidamente que o sobre consumo de Saúde por indivíduos saudáveis e a desorganização do Sistema estava a levar –  e levou –  como o de outros Países mas por razões diferentes a um limite insustentável de custos sem assistência humana.

A Medicina defensiva que a classe Médica naturalmente começou a praticar, pressionada pela perseguição mediática  promovida também pelos diversos tutores de Tutela e pela crescente exigência e informação do público,  levou talvez em parte  à situação paradoxal de muitos desconhecida e que explica em parte o  inimaginável 12.º lugar do topo da tabela , no qual a Ordem Mundial de Saúde   nos coloca no ano 2000/001- quanto à performance global em Saúde,  com os mesmos indicadores para os 195 Países do globo.

É que, os cidadãos portugueses, em geral,   já fizeram ou estão a fazer,  todos os exames que o Sistema  oferece! Ora, uma regra bem conhecida da classe médica é que cerca de 40 a 50% dos que procuram o Sistema não tem doença nenhuma embora possam ter sintomas. O grau de conhecimento e experiência  que o médico tem que Ter para que  em consulta/entrevista se consiga avaliar e decidir que nesse momento nada parece levar a crer que exista doença no horizonte que obrigue a testes ou qualquer tipo de exames complementares ou de especialidade,  não é possível entre nós.

Não é possível porque o Sistema que dá pouco tempo para a entrevista/exame, cerca de 5 minutos  com o Clínico Geral/Médico de Família, muitas vezes em instalações que embora já tenham relativa qualidade arquitectónica e logística carecem de pessoal administrativo suficiente com formação apropriada, tanto do ponto de vista humano como informático, leva a uma  escalada geradora de tensões que provocam muitas vezes consultas/entrevistas difíceis. Quantas vezes elas terminam com a solicitação de múltiplos exames complementares provavelmente desnecessários nessa fase da relação   desse  médico com esse “doente” mas que permite interromper no tempo limitado,  essa consulta até uma próxima.

Não tenho os dados que a Tutela possui mas seguramente que muitos das listas de espera que existem para exames complementares e consultas de especialidade tem que ver com esse e outros factos. E não são das mais extensas porque a história natural do nosso Sistema de Saúde adaptou as carências logísticas através de convenções com o Sistema privado,  que permitiram descomprimi-las mas também como é óbvio aumentando os custos do Sistema.

Relembro que o horário obrigatório de 80 a 90% dos médicos portugueses que trabalham para o Sistema de Saúde público/hospitalar é por lei 36/42 horas conforme as situações,  o que leva na realidade a que o médico tenha apenas que estar no Hospital de manhã, 5 dias por semana, já que as restantes 12/24 horas são nas urgências ou urgência interna obrigatórias por lei,  por vezes mais,  quando não há recursos humanos,  atenção, seja o Director Clínico do Hospital eleito,  ou nomeado.

Ora o Sistema, criou um mecanismo de tampão às suas próprias carências, permitindo  que o mesmo médico que de manhã faz serviço público,  de tarde ou de noite ou fins de semana,  faça serviços em horas extraordinárias  ou horas extraordinárias no privado.

As vantagens ultrapassam largamente  as desvantagens,  senão vejamos:

Para alguns,  essa fórmula,  desde que desmistificada a mensagem que esses actos são praticados de forma diferente num caso e noutro,  deveria até ser obrigatório pelo menos durante um período grande  de formação do médico, pois se no Hospital ou nas Urgências se vão confrontar em equipe com as situações mais complexas ou frequentes  que por lá passam,  permite com o treino no restante tempo de ambulatório privado aperceber-se das doenças ou doentes com menos complexidade ou gravidade e dar-lhe portanto a formação que permite a segurança que vai ajudar a restringir o consumo de Saúde (Exames Complementares e Medicamentos)

Claro que a mesma análise se aplica ao médico que vai seguir a carreira de Clínico Geral/Médico de Família e também ou até de Saúde Pública,  que  deveriam também percorrer as duas áreas do Sistema cuja existência têm sido,  é e serão  sem dúvida cada vez mais complementares e  mais humanas.

Reconhecendo a existência das chamadas áreas pública –e-  privada de Saúde,  comuns a todos os Países da Comunidade Europeia com as respectivas variações  regionais,  deveríamos poder adaptar-nos  da forma mais sensata, razoável, financeiramente mais económica e humanamente mais bem recebida pela Comunidade Nacional.

Para isso parece-me óbvio que tendo no momento presente um  número  suficiente de médicos e até de instituições de Saúde,  e já que todos tem um objectivo comum, tratar bem os Portugueses,  possuidores actualmente desde que residentes no País,  de um cartão de utilizador, que o mesmo pudesse ser utilizado livremente nas duas áreas que não sendo só complementares teriam então tarifário comum acordado de forma consensual e atingiria seguramente os objectivos dos utilizadores,  dos governantes e   do País.

Só assim se podem cortar o Nó Gordio que desejamos alcançar.

Dar igualdade de acesso e de assistência a todos os que estão doentes ou julgam estar,  assim como aos que necessitam de rastreio, prevenções de doenças ou acompanhamento posterior, com o menor custo e maior beneficio seria atingido em pouco tempo visto que os problemas seriam muito mais de logística do que financeiros,  sobretudo  se a tutela deixar separar o prestador do financiador  (Ver Cons. Reflexão p/ Saúde).

Os dois Sistemas já existem e tem sido mantidos pelas regras do mercado.

No dia em que fosse possível a utilização livre do cartão de utilizador já em vigor, cairia o “muro de Berlim”  entre os dois Sistemas que,  podendo embora provocar uma fase de alguma perturbação administrativa acabaria por se integrar num só espaço de utilização entre nós.    Os mecanismos  do chamado mercado neste caso muito especifico se encarregaria de limar as arestas económicas e financeiras sem aumentos de custos e  sem impedir a convergência  a que recentemente nos obrigámos. A redução da dupla utilização comum hoje em dia levaria  a uma razoável Poupança mantendo-se com direitos idênticos para todos os cidadãos.

Não é utópico, já o estamos a viver de forma oculta. Quem  esteja dentro do Sistema como eu e muitos outros – desde que de boa fé e com total isenção política,  reconhecem que é exequível – O mesmo acontece já na grande maioria dos Países da Comunidade e poderá se quisermos,  a curto prazo,   acontecer entre nós.  Esse será um dos objectivos a que fica obrigada a nova Administração do País, decerto  sem  a oposição dos Partidos de sinal oposto (Pacto de Regime?) já que  estariam atingidos os objectivos nacionais nesta área tão sensível para todos.

 

A Proposta fica. Portugal segue.